Uma mente em conflito. Duas línguas e uma montanha de livros—em ambas as línguas.
Comecei a ser alfabetizado em inglês quando morávamos em Boston por conta dos estudos do meu pai. Naquele momento, eu mal sabia onde estava e, evidentemente, não passou pela minha cabeça que aquela bela cidade me abrigaria algumas outras vezes no futuro.
De volta ao Rio de Janeiro, começou outra alfabetização e uma confusão mental que carrego comigo até hoje. Por exemplo, às vezes escrevo um texto inteiro em português e só lá pela terceira leitura de revisão é que percebo uma ou outra palavra em inglês. Esse bug mental é algo que eu adoraria capturar em tempo real, mas meu cérebro parece mais esperto que ele mesmo e camufla o momento da permuta brilhantemente.
Livraria Blackwell’s em Oxford.
A propósito, o mesmo acontece quando falo e, se for algo muito sutil, não regravo aquela parte do vídeo. Portanto, se você prestar muita atenção, notará que às vezes começo a primeira sílaba de uma palavra em inglês, mas logo percebo e volto para o português.
O problema mais sério, entretanto, está ligado às complicações usuais dessa nossa língua tão confusa. Entendo que quando aprendemos a escrever é normal ficar em dúvida entre o “ss” ou “ç”, por exemplo. Mas no meu caso, o caos reinava absoluto, com a confusão se estendendo ao “c” e até o “s”. Que, diga-se de passagem, às vezes tem uma crise de identidade achando que é um “z”. Assentos, digo, acentos, melhor nem falarmos sobre isto.
Com o tempo, o problema passou a me incomodar cada vez mais na escola. “Como é que as outras pessoas sabem quando usar as letras certas e eu não?” O mais estranho é que minha irmã também foi para a escola nos EUA e não tinha os mesmos problemas que eu. Uma vez perguntei como ela sabia que letra usar e a resposta “não sei como sei, só sei”, só serviu para criar em mim ainda mais desconforto mental.
Hoje em dia, acredito que a nossa diferença de idade foi suficiente para estarmos expostos a momentos distintos nas escolas nos EUA e no Brasil. Isso talvez explique a situação, já que ela nunca passou pelo processo de alfabetização nos EUA.
Enfim, quando na adolescência perguntei para uma amiga o mesmo, a resposta foi direta: “acho que você precisa ler mais”. Pensei sobre o assunto e achei que fazia sentido. Seria como aprender por força bruta. De tanto ver palavras, eu provavelmente atingiria o nível “só sei que sei” da minha irmã. Dito e feito. Outro dia, estava num café dizendo à dona que eu não sabia explicar a razão, mas achava que a vírgula que ele colocou numa placa não deveria estar ali.
Sempre gostei de ler, mas naquele dia resolvi mergulhar na maior aventura literária da minha vida. De livros a bulas de remédios. Se algo contendo letras aparecesse na minha frente, eu começava a ler. Aliás, é um hábito que carrego comigo até hoje. Leio tudo o tempo todo.
Porém, para não destruir o que eu já sabia de inglês, decidi que, se eu pudesse comprar um livro no original em inglês, eu faria isso. Por outro lado, autores brasileiros e os que não fossem de países cuja língua era o inglês, como Hermann Hesse, Gustave Flaubert, etc., eu leria em português. Obviamente.
Em pouco tempo, meu quarto de adolescente foi transformado numa biblioteca. Havia livros por toda parte. A quantidade era tamanha que foi provavelmente por conta deles que minha alergia piorou tanto. A decisão não foi fácil, mas depois de tantas consultas médicas, estava claro que eu precisava me livrar das minhas preciosidades. O que mais me doeu deixar partir foi a coleção completa do meu autor preferido, Fernando Sabino. Não foi nada fácil encontrar alguns dos livros que já não eram mais impressos e, além de adorar o estilo de escrita dele, chegamos a trocar algumas cartas. Enfim, foi triste me desfazer daquelas joias.
Do papel ao digital
E é aqui que duas de minhas paixões se cruzam. Meu primeiro eReader não foi um Kindle, nem o app da Amazon, foi o Palm. Havia um leitor bastante rudimentar, o PalmReader, onde era possível ler os livros em domínio público disponíveis para download no site Project Gutenberg. E foi assim, naquela telinha mínima, que li clássicos como “1984”. Todos em inglês.
Algum tempo depois, em 2000, surgiu o serviço Mobipocket, onde comprei meu primeiro livro eletrônico, Piloting Palm. Em 2005, a empresa foi adquirida pela Amazon e, ironicamente, o Piloting Palm nunca foi lançado em formato Kindle.
O aplicativo Mobipocket usava o formato .mobi
, que foi adotado por diversos livros eletrônicos vendidos na Amazon. Porém, como havia uma diferença entre o DRM usado nos livros de ambas as lojas, nunca pude ler minha cópia digital do Piloting Palm no Kindle.
Lembro de ter ficado chateado com a situação, mas tenho certeza de que não percebi que aquilo já era o embrião de um enorme inconveniente que afeta amantes da literatura hoje em dia. Aliás, é assim, por meio de soluções extremamente convenientes e simples de usar, que muitas empresas nos prendem a seus ecossistemas. É como estar em uma prisão ao ar livre. Parece ser cada vez mais difícil fazer o que desejamos, apesar de estarmos aparentemente livres. A Apple é um exemplo clássico, mas não é a única.
Algumas décadas depois, finalmente resolvi o meu problema, mas, a esta altura, minha cópia digital do Piloting Palm já havia desaparecido no tempo. Abordo esse tema em mais detalhes no vídeo abaixo.
A solução técnica vem de um aplicativo chamado Calibre. Com ele é possível remover a proteção conhecida como DRM que impede que livros eletrônicos sejam lidos em aplicativos diferentes dos ligados à empresa onde foram comprados. No vídeo abaixo, demonstro como é possível fazer isso.
Minha biblioteca digital está finalmente livre e reside em uma pasta do Obsidian. Em outras palavras, está sendo sincronizada com meus outros dispositivos e, ao mesmo tempo, faz parte das rotinas regulares de backup do meu computador.
Essa foi a última etapa do meu projeto Homem das Cavernas Digital, o que significa que agora tenho controle total sobre todo meu conteúdo digital. Aliás, que fique bem claro que não concordo com pirataria e não alimento essa prática. A única razão pela qual removi o DRM dos meus livros foi para que eu pudesse ter escolha. Em outras palavras, quero poder decidir onde ler os livros que comprei.
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